Em um cenário de reconfiguração econômica e busca por desenvolvimento regional sustentável, a Área de Livre Comércio de Boa Vista e Bonfim (ALCBV) desponta como uma engrenagem essencial na dinamização da economia de Roraima. Criada pela Lei nº 8.256, de 25 de novembro de 1991, e implementada em 2008, a área opera sob a lógica de estímulo ao comércio e à indústria por meio de isenções fiscais e apoio institucional, um mecanismo que reforça as relações com os países vizinhos, como Venezuela e Guiana, e posiciona Roraima como ponte estratégica da Amazônia com a América Latina.
Inspirada nos princípios da integração econômica descritos por Paul Krugman e Maurice Obstfeld na obra “Economia Internacional: Teoria e Política”, a ALC funciona como uma zona aduaneira especial com isenção de impostos federais para produtos nacionais e importados, voltada ao abastecimento do mercado local.
As áreas são alternativas similares à Zona Franca de Manaus (ZFM), porém com estruturas menos complexas. Elas exercem papel complementar de alto impacto, sobretudo em estados fronteiriços e de menor densidade industrial. Em Boa Vista, a atuação da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa) tem sido decisiva na consolidação de um ambiente de negócios mais competitivo.
Somente em 2024, a ALCBV movimentou cerca de R$ 5,37 bilhões em mercadorias beneficiadas com incentivos fiscais, de acordo com dados oficiais da Suframa. Esse valor representa 93,09% de todo o internamento de mercadorias em Roraima no ano, consolidando a área como o principal motor da atividade comercial no estado. O resultado também mostra um avanço significativo em relação a 2023, quando o total movimentado foi de aproximadamente R$ 4,05 bilhões.
Inicialmente, as unidades foram implantadas nos municípios de Pacaraima e Bonfim, devido à sua localização estratégica nas fronteiras com Santa Elena de Uairén, na Venezuela, e Lethem, na Guiana, respectivamente. No entanto, com a publicação do Decreto nº 6.614, de 23 de outubro de 2008, houve, na prática, uma transferência da área aduaneira de Pacaraima para a capital, Boa Vista, motivada por limitações geográficas: cerca de 66% do território de Pacaraima – o correspondente a 8.063,90 km² dos 12.098,5 km² totais – está situado dentro da Terra Indígena São Marcos, o que inviabilizava sua plena utilização econômica.
“As ALCs foram idealizadas para promover o desenvolvimento da região por meio da viabilização de produtos nacionais e estrangeiros a um preço mais acessível, com isenção de impostos, para impulsionar as vendas e, consequentemente, aumentar a geração de emprego e renda. No caso de Roraima, essa limitação geográfica restringia e afetava o crescimento das atividades da ALC no estado”, explica Jandirocy Teixeira Bispo, coordenador da ALC de Boa Vista e Bonfim. Com a alteração, o regime especial passou a abranger uma área total de 426.900,36 hectares em Boa Vista, consolidando a ALCBV como um importante vetor econômico.
Um estudo técnico realizado pela Federação do Comércio do Estado de Roraima (Fecomércio-RR) em 2021, com base em dados do Valor Agregado Bruto (VAB) do comércio no Produto Interno Bruto (PIB) estadual, apontou que a criação da ALC em Boa Vista e Bonfim impulsionou significativamente o setor de comércio e serviços em Roraima. Antes da implantação dessas áreas, o comércio local registrava um crescimento real médio anual de 5,5%. Após a vigência do novo regime, esse índice subiu para 6,1% ao ano, no período entre 2009 e 2018.
Mais do que isso, o desempenho do setor comercial superou a média de crescimento das demais atividades econômicas do estado, que ficou em 3,7% ao ano. A participação do comércio no PIB, que era de 10,7% até 2008, subiu para mais de 13% nos anos seguintes. Ainda segundo a Fecomércio-RR, esse avanço equivale a um acréscimo médio anual de R$ 260 milhões na geração de riqueza em Roraima.
Dados da Suframa indicam que Roraima possui atualmente 4.567 empresas beneficiadas por incentivos federais. Desse total, mais de duas mil atuam exclusivamente no comércio varejista, enquanto outras se distribuem entre atacado, serviços, agroindústria e energia. A ALCBV representa um polo crescente dentro da Amazônia Ocidental, responsável por 9,5% do volume total de mercadorias comercializadas nas ALCs da região.
A operação da unidade é conduzida por uma equipe enxuta, composta por 15 servidores da Suframa, responsáveis por tarefas estratégicas. Entre suas funções estão a análise dos pedidos de cadastro das empresas no sistema da autarquia, o controle das mercadorias com incentivos fiscais que entram no estado, o acompanhamento de pendências cadastrais e, ainda, a fiscalização de itens específicos, com foco em prevenir fraudes e outras irregularidades. Esse trabalho garante o bom funcionamento do regime especial e resguarda o modelo de incentivos contra possíveis desvios.
Empreendimentos que traduzem a ALCBV
Uma das empresas beneficiadas pela ALCBV é o supermercado Goiana, fundado em 2000, em Boa Vista, como uma empresa de médio porte, com capital social de aproximadamente R$ 1,3 milhão. Sua atuação principal está voltada ao comércio varejista de mercadorias em geral, com foco em alimentos, padaria, confeitaria, hortifrúti, carnes e eletrodomésticos, atuando em múltiplos CNAEs (Classificação Nacional de Atividades Econômicas) que incluem até fabricação própria de panificação e comércio atacadista. Atualmente, a companhia conta com 1.500 funcionários em suas nove filiais.
No Portal da Transparência da União, o Supermercado Goiana aparece classificado como “favorecido por renúncias fiscais”, o que indica que a empresa é contemplada por benefícios tributários concedidos no âmbito da ALCBV. Esses incentivos podem incluir isenção ou suspensão de tributos federais, como o Imposto de Importação (II), o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o PIS/Pasep e a Cofins, conforme o tipo de mercadoria e operação realizada. O acesso a esses benefícios está vinculado ao cadastro na Suframa e à observância das normas específicas do regime especial. A contadora da rede, Neide Miranda, explica que o Supermercado Goiana aproveita incentivos fiscais voltados principalmente ao PIS/Cofins (tributos federais) e ao ICMS (tributo estadual), o que ajuda a compensar parte dos custos logísticos e manter os preços mais acessíveis ao consumidor. “Os incentivos nos permitem maior fôlego financeiro e possibilitam práticas mais responsáveis no mercado. É uma engrenagem que estimula planejamento, investimento e estabilidade”, contou.
Esses incentivos são estruturados para tornar viável a operação de empresas de varejo na Amazônia Ocidental, reduzindo custos logísticos e tributários por conta da distância dos grandes centros consumidores. No caso do Goiana, isso contribui diretamente para manter preços competitivos e estimular maior inserção econômica dentro dos bairros de Boa Vista, além de favorecer outras cadeias locais – como fornecedores regionais de hortifrutigranjeiros e padarias – e reforçar o consumo doméstico regional.
Outro grande exemplo, no contexto de incentivos fiscais em Boa Vista, é o grupo Agroindustrial Serra Verde. A companhia, fundada em 2021, se estabeleceu em uma área de 300 mil metros quadrados às margens da BR‑174, com investimento inicial de cerca de R$ 150 milhões. A empresa atua como usina agroindustrial de soja, dotada de moderna infraestrutura com capacidade de esmagar até 1.000 toneladas de soja por dia e refinar 250 toneladas de óleo diariamente – o que equivale a cerca de 2 milhões de litros de óleo produzidos por dia –, além de gerar 770 toneladas de farelo diário e estocar até 9.000 toneladas de farelo. Essa estrutura soma ainda um grande complexo de armazenagem, com capacidade estática de 72 mil toneladas, movimentando até 3.500 toneladas por dia na safra.
Beneficiada pelo regime fiscal da ALCBV, a Agroindustrial Serra Verde mobiliza atualmente 200 empregos diretos e cerca de 3.500 empregos indiretos, em função de sua cadeia produtiva e parcerias com agricultores locais, inclusive da agricultura familiar. A empresa não só abastece o mercado interno, incluindo Roraima e Amazonas, como também exporta farelo de soja para países do Caribe e Guiana, contribuindo diretamente para a geração de renda, incremento de produção agrícola local e integração regional.
A implantação da Agroindustrial Serra Verde foi viabilizada com o apoio dos incentivos fiscais concedidos pela Suframa. A empresa passou a operar oficialmente com o benefício a partir de março de 2023, após publicação da portaria de habilitação no Diário Oficial da União. Entre as vantagens concedidas, estão a isenção de IPI e Imposto de Importação para máquinas e equipamentos industriais, além de redução de tributos federais como PIS e Cofins, o que permitiu a instalação de um parque fabril de grande porte com menor custo de implantação.
A Serra Verde também integra as estatísticas da Suframa como uma das principais empresas cadastradas no regime especial em Roraima, reforçando a presença da indústria de transformação no estado, setor que, até então, tinha baixa participação no PIB local.
Logística é um desafio ao avanço das empresas
Apesar dos incentivos fiscais proporcionados pela ALCBV, um dos principais entraves ao pleno desenvolvimento das empresas instaladas na região ainda está relacionado à precariedade da infraestrutura logística. As dificuldades no transporte de mercadorias, especialmente em um estado com limitações viárias severas, acabam neutralizando parte das vantagens fiscais oferecidas pelo regime.
Para empresas do varejo, como o Supermercado Goiana, que depende de uma cadeia de abastecimento constante para manter suas nove lojas ativas na capital, os obstáculos são sentidos diariamente. “O aumento do combustível impacta diretamente o custo da mercadoria. A demora na entrega, com rotas longas e pouco otimizadas, acaba refletindo no preço final ao consumidor”, explicou Neide Miranda.
Segundo ela, mesmo com o benefício tributário, o transporte rodoviário continua sendo o modal mais utilizado, o que deixa as empresas vulneráveis à volatilidade dos preços do diesel e à precariedade das estradas que ligam Boa Vista a Manaus ou ao restante do país. “Não adianta ter isenção se o produto chega com custo elevado por causa do frete. Muitas vezes, o consumidor nem percebe que está pagando mais pela logística do que pelo item em si”, afirmou a contadora.
No setor industrial, o cenário não é diferente. A Agroindustrial Serra Verde também enfrenta desafios estruturais para manter sua competitividade nos mercados interno e externo. O sócio-diretor da empresa, Felipe Castro, aponta que a falta de fluidez nos corredores logísticos e as dificuldades nos processos aduaneiros prejudicam o escoamento da produção. “É preciso melhorar as condições de transporte e a estrutura de fiscalização nas fronteiras para agilizar os processos de exportação. Transformamos a matéria-prima local em produto final dentro do estado. Isso muda toda a lógica econômica da exportação”, argumentou.
Para ele, a localização de Roraima, com acesso direto à Guiana e à Venezuela, representa uma vantagem estratégica que ainda não é plenamente aproveitada devido à burocracia e à ausência de uma política logística integrada. “O que hoje é um diferencial poderia se tornar um vetor de desenvolvimento para o estado inteiro, se houvesse um planejamento mais efetivo nas aduanas e no sistema de transporte. Estamos prontos para produzir, mas o escoamento não acompanha a nossa capacidade”, completou Castro.
Atuação política assegura benefícios fiscais
A tramitação da Reforma Tributária no Congresso Nacional trouxe incertezas para os regimes diferenciados que operam na Amazônia, como é o caso da ALCBV. No texto original da proposta, não havia menção à continuidade dos incentivos fiscais que beneficiam diretamente empresas instaladas em Boa Vista e Bonfim. O cenário mobilizou a bancada federal do estado, que atuou de forma decisiva na inclusão de emendas que garantissem a permanência desses benefícios.
O senador Dr. Hiran Gonçalves (Progressistas-RR), que participou ativamente das negociações, destaca que o maior desafio foi assegurar, no novo regime tributário, as especificidades regionais de estados como Roraima. “Conseguimos aprovar emendas de nossa autoria que asseguram a continuidade dos benefícios no decorrer do novo regime tributário. Isso é fundamental para garantir segurança jurídica e previsibilidade para quem investe aqui”, afirmou. Para ele, o papel do Parlamento foi crucial diante do vácuo deixado pelo Executivo. “O trabalho parlamentar é fundamental para preservar essas vantagens e evitar perdas que poderiam impactar negativamente o desenvolvimento econômico do estado”, acrescentou.
Além de preservar os incentivos, os parlamentares também conquistaram novos avanços. A legislação aprovada incluiu a isenção do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) para a importação de bens de capital destinados à atividade industrial nas ALCs. Outro ponto garantido foi a possibilidade de as empresas utilizarem créditos presumidos por um período de até cinco anos, o que fortalece o planejamento empresarial de longo prazo e amplia a competitividade das empresas locais.
O senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR) também foi um dos protagonistas nessa articulação política e criticou duramente a falta de ação do Governo Federal na defesa da região. “O Governo Federal não adotou medidas concretas para fortalecer a Área de Livre Comércio de Boa Vista, nem para reduzir as desigualdades regionais, especialmente em relação à região Norte”, pontuou. Segundo ele, foi justamente essa omissão que impulsionou a atuação mais firme no Senado.
“Lutei intensamente no Congresso e consegui garantir, por meio de emendas que hoje fazem parte da Constituição, a manutenção dos benefícios fiscais das ALCs de Boa Vista e Bonfim. Isso assegura a Roraima uma competitividade semelhante à da Zona Franca de Manaus e fortalece diretamente a nossa economia”, reforçou Mecias.
Ele também destaca que o novo arcabouço legal estende o prazo de vigência das ALCs, que antes terminava em 2050. “Agora, temos mais 23 anos de estabilidade jurídica, o que dá fôlego para atrair investimentos e garantir a continuidade dessas áreas estratégicas para o desenvolvimento do estado”, acrescentou.
As vitórias legislativas garantidas durante a tramitação da Reforma Tributária marcam um momento de respiro para o setor produtivo de Roraima, que depende dos incentivos fiscais para competir com praças mais industrializadas e próximas dos grandes centros consumidores. Contudo, os senadores reconhecem que o trabalho não se encerra com a aprovação do texto. “O desafio agora é garantir que a implementação da nova legislação não comprometa a competitividade, a segurança jurídica e os benefícios que sustentam o desenvolvimento de Roraima”, ressaltou o senador Mecias.
Por Karla Ximenes, estagiária sob a supervisão de Francisco Gomes MTB (2238/AM)
