O Processo Produtivo Básico (PPB), definido em lei, é o conjunto mínimo de operações que uma fábrica deve cumprir para caracterizar a industrialização de um produto no Brasil. O objetivo é garantir que determinados produtos sejam efetivamente industrializados no país, e não apenas montados com componentes importados.
Nos primeiros anos da Zona Franca de Manaus (ZFM), inaugurada em 1967, as regras de industrialização eram muito mais flexíveis. O critério central era basicamente a instalação física da empresa na área incentivada, o que já garantia acesso às isenções fiscais.
Segundo o estudo “Zona Franca de Manaus: Impactos, Efetividade e Oportunidades”, lançado em 2019 pela Fundação Getúlio Vargas, esse modelo acabou recebendo críticas porque gerava baixo valor agregado local: a atividade industrial de Manaus, em grande parte, restringia-se a ser um entreposto de montagem final de bens acabados, sem desenvolvimento de fornecedores regionais ou transferência tecnológica significativa.
Além disso, havia denúncias de que algumas empresas apenas “maquiavam” produtos, um processo apelidado de “maquiagem industrial”, para obter benefícios fiscais sem de fato produzir no Brasil. É nesse contexto que surge a ideia do PPB.
O processo foi instituído ainda durante o governo de Fernando Collor (1990–1992), mas os primeiros PPBs só foram publicados no governo de Itamar Franco (1992–1995). Desde então, esse processo passou a ser utilizado como contrapartida do Governo Federal para a concessão de incentivos fiscais da ZFM e da legislação de bens de informática, telecomunicações e automação, a chamada Lei de Informática.
De acordo com o economista Diego Gonçalves, especialista em incentivos fiscais da ZFM, ao exigir que etapas significativas da produção sejam realizadas no país, como montagem, soldagem, injeção de plásticos ou testes de qualidade, o PPB aumenta a necessidade de mão de obra. Isso ajuda a manter os milhares de empregos diretos no Polo Industrial de Manaus (PIM) e multiplica oportunidades em setores de serviços, comércio e logística.
“A lógica do Processo Produtivo Básico estimula a verticalização da cadeia produtiva, trazendo para dentro do território nacional etapas que, de outra forma, seriam realizadas em outros países. Com isso, o valor agregado, como mão de obra, serviços e tecnologia, passa a ser gerado localmente, fortalecendo a indústria nacional e tornando a economia mais resiliente a crises externas e choques de logística global”, comenta.
Em 2025, a Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa) registra o maior patamar de ocupação da série: média de 131.592 trabalhadores diretos entre janeiro e julho, alta de 9,28% diante da média de 120.413 registrada em 2024.
Segundo o economista, o Processo Produtivo Básico traz ganhos logísticos importantes, que se refletem na diminuição da dependência de longas rotas internacionais, na redução dos prazos de entrega e no fortalecimento de fornecedores locais, além de gerar efeitos positivos ao meio ambiente.
“O PPB determina que várias etapas produtivas sejam realizadas na Zona Franca de Manaus ou no restante do país, com isto ocorre a redução da dependência de importações, diminui o custo logístico e a exposição a variações cambiais impactando no custo de produção. Ao mesmo tempo, a produção local reduz a necessidade de transporte de longa distância, como o marítimo internacional, o que contribui para a queda das emissões de carbono associadas à logística. Além disso, as empresas do PIM são obrigadas a seguir rigorosos padrões ambientais para obter e manter o usufruto dos incentivos fiscais”, aponta.
Os PPBs são fixados por Portarias Interministeriais assinadas pelos ministros do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) e da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).
Para incentivar a produção nacional de bens de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), foram editadas a Lei nº 8.248/1991 (Lei de Informática) e a Lei nº 8.387/1991, que trata dos benefícios da ZFM e conecta o modelo ao PPB. Um dos pilares desse arranjo é a obrigatoriedade de destinar parte do faturamento líquido obtido com produtos incentivados para investimentos em Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I). Desde 2001, tanto o cumprimento do PPB quanto a aplicação em PD&I passaram a ser contrapartidas explícitas exigidas para que as empresas tenham acesso aos incentivos fiscais no setor de informática.
Mas Gonçalves pondera: “É importante ressaltar que, embora a obrigação de PD&I seja amplamente conhecida no setor de bens de informática, diversas empresas de outros segmentos também possuem essa contrapartida, que é fixada em seus Processos Produtivos Básicos específicos. Portanto, para manter os incentivos, as empresas são obrigadas a investir em inovação na região, independentemente do setor”.
Ao contrário da legislação da ZFM, cujos benefícios alcançam qualquer empresa instalada na região, os incentivos da Lei de Informática se destinam apenas às companhias que produzem bens de TIC, listados no Decreto nº 5.906/2006.
Para dar mais transparência e previsibilidade, o governo instituiu o Grupo Técnico Interministerial do PPB (GT-PPB), responsável por examinar, emitir pareceres e propor a fixação/alteração de PPBs. A regra está na Portaria Interministerial MDIC/MCTI nº 56/ 2024, que também define consulta pública de 15 dias e prazo total de até 120 dias para a decisão final (aprovação ou indeferimento) a partir do pedido formal. O GT-PPB é composto por MDIC, MCTI e Suframa.
A iniciativa de propor um PPB geralmente parte da empresa fabricante interessada em produzir com incentivos. Recebida a proposta, o GT avalia critérios como adensamento produtivo e valor agregado nacional e pode indeferir pedidos que não atinjam patamar considerado satisfatório para o desenvolvimento industrial. Além da empresa interessada, o processo costuma envolver fornecedores locais, concorrentes e entidades setoriais, para alinhar os incentivos ao interesse público e à competitividade da indústria.
A fabricação conforme o PPB abre acesso a um pacote robusto de benefícios federais: redução de até 88% no Imposto de Importação (II) para insumos, isenção de IPI no produto final, isenção de PIS/Pasep e Cofins nas operações internas e, ainda, tratamento diferenciado de PIS/Cofins para vendas destinadas ao restante do país, ajudando a tornar a produção local mais competitiva frente a importados.
O GARGALO DOS COMPRESSORES
A ZFM enfrenta hoje um de seus principais gargalos: a oferta doméstica de compressores, peça central do ar-condicionado, responsável por criar a circulação e a pressão necessárias para que todo o ciclo de refrigeração funcione corretamente. O entrave se relaciona a uma exigência do PPB: comprar parcela mínima de compressores produzidos no Brasil.
“A política industrial do PPB exige que as empresas adquiram uma quantidade de compressores fabricados em território nacional. Porém, a única empresa hoje existente, a Tecumseh, não consegue atender à demanda”. É o que explica Thiago Rodrigues, diretor de políticas industriais da Associação Nacional de Fabricantes de Produtos Eletroeletrônicos (Eletros).
A limitação acendeu o alerta na cadeia e atraiu a atenção de players estrangeiros. “No mundo, a quantidade de fabricantes de compressores não é tão elevada. E, de fato, o principal país produtor é a China. Por isso, empresas chinesas demonstraram interesse em conhecer melhor o Brasil, justamente porque o nosso mercado está crescendo. Hoje, o cenário está mais pulsante, e isso chamou a atenção”, inclui.
Uma comitiva chinesa com executivos da GMCC e Gree, fabricantes globais de compressores, esteve em Manaus no início de setembro para discutir a cadeia local de ar-condicionado e avaliar oportunidades, um movimento visto como possível porta de entrada de novas fábricas do item no país.
Na ocasião, a Eletros esteve representada pelo seu presidente Jorge Júnior Nascimento, que classificou o gargalo como gravíssimo, afirmando que a fabricante de compressores “não está atendendo o mercado, seja em quantidade, seja em qualidade de produtos”.
Durante a 320ª reunião ordinária do Conselho de Administração da Suframa (CAS), ocorrida em agosto, o secretário-executivo do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC), Márcio Fernando Elias Rosa, afirmou que o Governo Federal acompanha de perto a situação e que uma reunião técnica seria realizada, com expectativa de solução até a 321ª reunião do Conselho, prevista para o fim de outubro.
“Hoje nós temos, acredito, 33 pleitos de alteração ou substituição de PPBs e, desses, 22 são pleitos da Zona Franca de Manaus. E 10 estão já com o prazo de 120 dias, que é o nosso prazo legal de análise, para expirar. Em razão desse volume, nós não conseguimos equacionar essa outra questão que também está pendente [questão dos compressores]”, explicou o secretário, na ocasião.
De janeiro a julho de 2025, o PIM registrou 3.707.994 vendas de condicionadores de ar do tipo split, ante 3.283.720 no mesmo período de 2024, um pouco mais de 424 mil unidades.
Apesar do ritmo, o setor sente os efeitos da escassez de compressores. “Estamos falando de aproximadamente 15 mil trabalhadores empregados nas 18 empresas de ar-condicionado que atuam no Polo de Manaus. A partir do momento em que os compressores não estão disponíveis, as empresas deixam de investir, de contratar e até cogitam demissões”, afirma Rodrigues.
Em 5 de setembro, o MDIC e o MCTI abriram a Consulta Pública nº 30/2025 com uma proposta de flexibilização no PPB de ar-condicionado tipo split, tema que segue em debate.
“O PPB tem como premissa o adensamento produtivo. Em 2025, por exemplo, temos que adquirir cerca de 12,7% da produção total com base nesses componentes fabricados aqui”, salienta o representante da Eletros.
Mesmo reconhecendo a importância da fábrica nacional, Rodrigues diz que a obrigação atual não condiz com a capacidade de produção. “Mas se ainda assim o governo entende que é importante ter essa fábrica, que pelo menos ajuste a obrigação ao nível de capacidade que ela pode fornecer. Estamos discutindo agora com o Governo Federal a flexibilização dessa regra”, afirma.
Procurada pela revista PIM Amazônia, a multinacional norte-americana Tecumseh disse, em nota, que sua unidade de São Carlos possui hoje capacidade instalada para fabricar 1,5 milhão de compressores inverter por ano, volume considerado suficiente pela companhia para atender às exigências do PPB. Segundo a empresa, essa estrutura produtiva assegura o cumprimento das regras estabelecidas para manter os incentivos fiscais e fortalecer a cadeia nacional.
A empresa informou também que deu início, em 2025, a um plano estruturado de expansão da capacidade de São Carlos, com etapas sucessivas de incremento anual. Esse programa já foi apresentado aos principais stakeholders e prevê um ciclo contínuo de investimentos nos próximos anos. “O plano contempla uma expansão relevante prevista para o segundo semestre de 2026”, comunicou a Tecumseh, ao reforçar que a estratégia de longo prazo tem como foco o fortalecimento da indústria nacional e a ampliação do papel do Brasil na cadeia global de climatização.
“A Tecumseh mantém diálogo permanente com o Governo Federal, no âmbito do MDIC, MCTI e BNDES, reforçando seu compromisso com investimentos consistentes em ampliação de capacidade, introdução de novas tecnologias e desenvolvimento de produtos inovadores. Essas iniciativas têm como objetivo assegurar a competitividade da indústria nacional, apoiar a modernização do parque fabril, garantir o abastecimento da cadeia produtiva do Polo de Manaus e preservar os interesses estratégicos do país”, informou trecho da nota.
Por Francisco Gomes, jornalista (MTB 2238/AM), e Amanda Gabriele, estagiária de jornalismo.
