A imagem popular de que a Zona Franca de Manaus (ZFM) é um território livre de regras nunca correspondeu ao que diz a lei, nem ao que mostram os sistemas que, hoje, seguem cada nota fiscal que entra em fábricas do Polo Industrial de Manaus (PIM) e em empresas das Áreas de Livre Comércio (ALCs) na Amazônia. Não raras vezes, o modelo é tratado como um espaço de desordem ou de falta de controle.
A estrutura responde mensalmente a uma série de órgãos que acompanham de perto cada etapa da atividade empresarial: da aprovação de projetos até a execução de metas de produção, importação, exportação e sustentabilidade.
Em entrevista concedida à revista PIM Amazônia, a presidente do Conselho Regional de Economia do Amazonas e Roraima (Corecon-AM/RR), Michele Aracaty, ressalta que a imagem popular é fruto de um desconhecimento que atinge até mesmo parte considerável da população amazonense: “Muitos acreditam que a Zona Franca é uma bagunça, quando, na verdade, há um rigor de fiscalização que impede qualquer empresa de atuar fora das regras. Se o projeto não estiver 100% regularizado, sequer chega à pauta do Conselho de Administração da Suframa”.
A ZFM foi instituída em 1967 pelo Decreto-Lei nº 288, que a definiu como área de livre comércio com incentivos fiscais, equiparando determinadas operações ao regime de exportação. Mas essa “livre circulação” de mercadorias não é irrestrita, já que depende do cumprimento de uma série de procedimentos administrativos e eletrônicos.
O primeiro passo para uma empresa interessada em se instalar na Zona Franca e usufruir de seus benefícios fiscais é procurar um escritório de consultoria econômica, onde um profissional habilitado elabora o projeto técnico e financeiro de viabilidade. Pela norma, esse estudo deve ser assinado por um economista regularmente registrado no Corecon-AM/RR, responsável por atestar a consistência das informações apresentadas.

Após ser encaminhado e passar por análise inicial da equipe técnica da Suframa, o projeto é levado à apreciação do Conselho de Administração da autarquia (CAS). “Nenhuma empresa acessa os incentivos sem passar por esse crivo, que avalia a pertinência do empreendimento e pode estabelecer condicionantes”, pontua Aracaty, que também é professora no Departamento de Economia e Análise da Universidade Federal do Amazonas.
A atuação do conselho é pública e recorrente: só em agosto deste ano, na 320ª Reunião Ordinária, o CAS aprovou 56 projetos que somam R$ 1,25 bilhão em investimentos e preveem 2.153 empregos diretos. Em maio, outra rodada já havia autorizado quase R$ 1 bilhão.
“As aprovações do Conselho crescem ao longo dos anos, pois as empresas que procuram o Polo Industrial de Manaus sabem que nós temos um capital humano qualificado. No momento em que a empresa vem para cá, se ela for do segmento de ar-condicionado, por exemplo, ela sabe que aqui tem vários trabalhadores que já conhecem a atividade, que já conhecem como funciona o processo. Esse é um dos diferenciais do PIM”, comenta.

Se aprovado e homologado o projeto, a empresa tem três anos para se implantar. “Existe o antes, o durante e o depois. A empresa precisa arrumar um galpão, tem que comprar máquina, equipamento, realizar a instalação, buscar as licenças de operação. Não é de uma hora para hora. Não é, de fato, uma zona”, esclarece a professora.
O CAS não apenas aprova novos projetos, mas também monitora alterações de escopo, ampliações e renovações. Esse é um mecanismo formal de fiscalização coletiva, que envolve representantes de diversos ministérios, estados e sociedade civil.
Atuação da Suframa

Gerente do modelo ZFM, cabe à Autarquia Federal aprovar projetos industriais, analisar a viabilidade econômica e técnica e liberar benefícios após um processo de checagem que exige certidões negativas junto a órgãos como Receita Federal, Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e Caixa Econômica.
Mensalmente, cada empresa ativa no PIM precisa enviar relatórios com informações sobre produção, número de trabalhadores contratados e demitidos, importações, exportações e aquisição de insumos. Esses dados alimentam sistemas próprios, como o CADSUF (Cadastro da Suframa) e o SIMNAC (Sistema de Ingresso de Mercadoria Nacional), que permitem rastrear e auditar cada operação.
Quando uma empresa compra insumos ou mercadorias nacionais que, em seguida, entrarão na ZFM com benefícios fiscais (isenções ou reduções), a Suframa exige que essa mercadoria seja internada legalmente no sistema. Isso funciona assim: o remetente gera um PIN-e (Protocolo de Ingresso de Mercadoria Nacional) antes do envio, por meio do sistema SIMNAC. O transporte da mercadoria precisa estar associado a esse PIN-e, com nota fiscal e manifesto de carga.
A Suframa então checa documentos, confere dados eletronicamente e pode fazer vistoria física para confirmar que aquilo efetivamente entrou na área incentivada. Se tudo estiver correto, ocorre o internamento, o que legitima o uso dos incentivos fiscais. Se houver erro, atraso ou documentação insuficiente, a empresa pode perder direito ao incentivo ou ter que pagar impostos de volta. Todo esse processo tem prazo máximo de 120 dias contados da emissão da Nota Fiscal Eletrônica (NF-e). Se o prazo estoura, o benefício é perdido, a menos que a empresa solicite uma vistoria chamada extemporânea, que deve ser pedida antes do vencimento.

A conclusão desse processo aparece como um evento oficial chamado “internalização”, que pode ser consultado no portal nacional da NF-e. A antiga Declaração de Ingresso, que era um documento separado, deixou de existir em 2019, quando entrou em funcionamento o SIMNAC, que substituiu o sistema anterior, conhecido como SINAL.
A nota fiscal usada nessas operações deve trazer o número de inscrição da empresa na Suframa, o valor do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) que foi isentado e o motivo da isenção, que no sistema da NF-e é identificado pelo Motivo 7 – Suframa. Já no caso do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), a legislação obriga que a base legal da isenção seja escrita no campo de informações complementares. Desde outubro de 2019, o próprio evento de internalização passou a ficar visível no portal nacional, o que aumentou a transparência do processo.
Em visitas técnicas, os fiscais da Suframa vão além de simplesmente verificar se há a produção. Eles conferem se toda a linha de fabricação está seguindo exatamente as etapas mínimas determinadas no Processo Produtivo Básico (PPB), etapas mínimas que devem ser realizadas dentro de Manaus, como soldagem, montagem, pintura, tratamento térmico, testes elétricos ou outros processos específicos para cada produto. Eles exigem que peças, componentes e insumos usados efetivamente realizem as operações previstas no PPB (não apenas importados prontos) e verificam se há subcontratação ou terceirização respeitando as restrições, já que algumas etapas não podem ser terceirizadas ou só podem ser realizadas localmente.
O PPB não é algo fixo, mas sim definido em portarias conjuntas do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) e é atualizado de tempos em tempos para acompanhar mudanças tecnológicas e políticas industriais. Em 2024, por exemplo, foram criados novos PPBs para polímeros de etileno e de propileno e atualizadas as regras para produtos como fones sem fio e computadores “all in one”. Se a empresa não cumpre o que está no PPB, perde o direito ao incentivo.
Nas visitas, os agentes também conferem se as quantidades mínimas de operações, que são pontuadas, estão sendo cumpridas, no caso de segmentos como motocicletas, há regras de “Controle de Pontos e Peças”. Caso identifiquem falhas, a exemplo de etapas não executadas, documentação falha ou divergências entre os processos reais e os declarados, eles podem determinar sanções, exigir ajustes, suspender o uso do incentivo ou até cancelar o benefício fiscal para aquela empresa.

“A Suframa tem um papel essencial de assegurar a transparência da política pública que administra ao controlar, por meio de sistemas informatizados, a entrada de mercadorias nacionais e estrangeiras na área incentivada, bem como ao acompanhar o cumprimento das contrapartidas aos incentivos fiscais exigidas em lei. Essa atuação não é um obstáculo, mas sim a própria garantia de sobrevivência e credibilidade do nosso modelo, pois coíbe desvios e assegura que os incentivos fiscais cumpram seu verdadeiro propósito de promover o desenvolvimento regional com efetividade”, resume o superintendente da Autarquia, Bosco Saraiva.
Receita Federal
A Receita Federal é responsável por fiscalizar a entrada e a saída de mercadorias na Zona Franca de Manaus, garantindo que os incentivos fiscais só sejam usados de forma correta. Toda empresa que envia produtos para a ZFM precisa registrar essas operações no sistema da Receita, por meio de uma declaração chamada DCI (Declaração para Controle de Internação), feita em um de seus principais instrumentos: o Sistema de Internação (Siscomex). Existem dois caminhos: no procedimento ordinário, cada carga precisa ser declarada e apresentada em recinto alfandegado para conferência; já no procedimento simplificado, permitido a empresas habilitadas, é enviada apenas uma DCI mensal com o resumo das operações.
A Receita cruza essas informações com as notas fiscais e pode exigir a apresentação física da carga em alfândega para verificar se a mercadoria realmente entrou na ZFM. Se a empresa não declarar corretamente ou perder prazos, pode ter os benefícios suspensos e ser obrigada a pagar os tributos que haviam sido isentados. Além disso, a Receita atua contra fraudes, como o desvio de produtos que deveriam permanecer na ZFM para outras regiões sem recolhimento de impostos, casos que podem gerar operações conjuntas com a Polícia Federal.

Sefaz Amazonas
No âmbito estadual, a Secretaria de Fazenda do Amazonas (Sefaz-AM) é a autoridade fiscal que regula e controla os incentivos relativos ao ICMS para empresas da Zona Franca de Manaus. Isso inclui a concessão de crédito estímulo, diferimento e isenções, sob a Lei estadual 2.826/2003 e suas alterações mais recentes (como a Lei 5.750/2021), que definem critérios, prazos e exigem compensações e estornos para manutenção dos benefícios.
Ela monitora a apuração desses incentivos via escrituração (SPED Fiscal) e auditorias internas, e fiscaliza operações interestaduais com suspensão de ICMS através de remessa para armazéns gerais — desde que a mercadoria retorne ao estado dentro do prazo legal, sob risco de exigência do imposto. Além disso, parte da arrecadação do polo industrial é legalmente vinculada a fundos estaduais e ao financiamento de instituições como a Universidade do Estado do Amazonas (UEA), reforçando que os benefícios fiscais são condicionados ao retorno social e ao equilíbrio fiscal.
“Uma primeira atribuição da Sefaz é garantir, por exemplo, que a UEA receba um percentual que vem das empresas do Polo Industrial de Manaus, porque a UEA está em diversos os municípios. Então, esse incentivo fiscal vai gerar educação, vai gerar qualificação dessa mão de obra para quem está longe do Polo Industrial de Manaus. É a Sefaz que tem essa prerrogativa de repassar o valor para a UEA, que implementa um modelo de qualificação dos alunos que estão no interior”, pontua a professora Michele.
“A Lei de Informática garante recursos para startups, aceleradoras, incubadoras tecnológicas e centros de inovação. Cabe à Sefaz repassar esses valores, funcionando como elo entre a arrecadação do Polo Industrial e os investimentos em pesquisa e desenvolvimento. O volume do repasse varia conforme a arrecadação. Quanto maior ela for, maior também será o montante destinado; se a arrecadação cai, o repasse automaticamente diminui”, completa.
Fiscalização ambiental
A fiscalização ambiental das fábricas do PIM é, na prática, conduzida sobretudo pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), o órgão estadual que licencia, impõe condicionantes e faz vistorias periódicas, com poder de multar, embargar e suspender licenças.
Isso decorre da divisão de competências da Lei Complementar 140/2011 e de normas locais: no Amazonas, o licenciamento de atividades industriais é atribuição do Ipaam, enquanto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) cabe apenas licenciar, e conduz o processo, quando a obra ou atividade se enquadra nos casos federais definidos em lei, como impactos que ultrapassem limites de Estado, incidam em unidades de conservação federais ou terras indígenas. Mesmo quando não licencia, o Ibama pode fiscalizar.
No dia a dia das fábricas da Zona Franca de Manaus, o Ipaam exige que as empresas tenham as licenças ambientais necessárias para funcionar e cumpram regras como tratar a água usada, controlar a fumaça, cuidar do lixo e manter planos de segurança. Periodicamente, técnicos do órgão visitam as indústrias para verificar se essas exigências estão sendo seguidas. Se encontram problemas, podem aplicar multas ou exigir ajustes por meio de termos de compromisso.
Um ponto que ganhou força recentemente é a logística reversa, que obriga as empresas a apresentar planos e relatórios sobre o destino de embalagens e materiais descartados. Desde 2024, isso se tornou condição para renovar licenças no Amazonas. O diretor-presidente do Ipaam, Gustavo Picanço, destaca: “Nosso objetivo é apoiar o setor empresarial para que a transição ocorra de forma organizada e dentro dos prazos legais. A logística reversa é um instrumento essencial para o desenvolvimento sustentável”.

Além disso, atividades potencialmente poluidoras, comuns no PIM, devem se inscrever no Cadastro Técnico Federal do Ibama (CTF/APP), que é o registro nacional das empresas para impacto ambiental. As empresas inseridas nessas atividades também precisam pagar a Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental (TCFA), um valor cobrado anualmente para custear a fiscalização, e entregar o Relatório Anual de Atividades Potencialmente Poluidoras (RAPP), documento em que informam ao Ibama suas emissões, resíduos e medidas de controle. Essas obrigações alimentam os bancos de dados do órgão e servem de base para direcionar inspeções e ações de fiscalização.
Fiscalização de alto nível
O Tribunal de Contas da União (TCU) fiscaliza a ZFM avaliando se os incentivos fiscais foram concedidos e acompanhados com critério, transparência e eficiência. O TCU faz auditorias técnicas que revisam desde a análise dos projetos industriais e dos PPBs, até a conferência dos relatórios de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I) e das comprovações de investimentos. Quando encontra falhas, como prazos descumpridos, análises incompletas ou inconsistências nos relatórios, o Tribunal emite decisões, os chamados acórdãos, com determinações para a Suframa e outros órgãos corrigirem processos, melhorarem controles e prestarem contas.
Em 2024 o TCU publicou auditoria apontando fragilidades na validação de projetos e no acompanhamento dos benefícios da ZFM, e em decisões subsequentes reconheceu também iniciativas de regularização e melhoria adotadas pela Suframa.
Segundo o Portal TCU, algumas das falhas identificadas foram:
● Ausência de metodologia formal e critérios claros para analisar pedidos de PPB e projetos industriais;
● Prazos legais não cumpridos: em muitos casos o limite de análise (120 dias) foi ultrapassado em processos de fixação ou alteração de PPB;
● Divergências nos valores que empresas deveriam depositar em fundos vinculados (como o FNDCT-Amazônia) frente aos valores efetivamente declarados e recolhidos.
Em outras palavras, além apontar problemas, o TCU exige, em consonância, ações concretas – por exemplo: padronizar critérios de análise, reduzir passivos de relatórios pendentes, criar metodologias de monitoramento – e acompanha o cumprimento dessas medidas. Se os órgãos não atenderem às determinações, o Tribunal pode remeter o caso ao Congresso, recomendar responsabilizações administrativas e segregar processos até garantir correção.
Já a Controladoria-Geral da União (CGU) age em outra frente, voltada à integridade, prevenção de irregularidades e controle interno. A CGU trabalha na frente das auditorias e inspeções, apurando denúncias, checando a conformidade de procedimentos administrativos e financeiros e avaliando se há fraudes, omissões ou favorecimentos indevidos no uso de recursos públicos vinculados à ZFM.
A Controladoria publica relatórios e pode instaurar auditorias específicas sobre a atuação da Suframa e sobre transferências federais ou programas que envolvam empresas beneficiadas. Seus produtos servem de subsídio para ações administrativas, responsabilizações e para que órgãos como Suframa e ministérios aprimorem controles.