Sandra Maria Buenafuente, pesquisadora da área de economia ecológica e políticas públicas, avalia as possíveis ocorrências em potenciais de explorações de terras raras em Caracaraí, Roraima, e os impactos que esse processo pode trazer para o Brasil e para a Amazônia. Na entrevista, ela aponta que o país só terá relevância na cadeia global da transição energética se avançar além da extração de minérios, investindo em refino, tecnologia de separação e políticas industriais que integrem polos como a Zona Franca de Manaus.
Sandra alerta para o risco da chamada “maldição dos recursos”, fenômeno que afeta países ricos em bens naturais mas pobres em desenvolvimento, e defende que uma exploração responsável deve contemplar governança ambiental, consulta às comunidades locais, destinação de receitas para educação e pesquisa e fortalecimento de cadeias produtivas internas. Para ela, o desafio é transformar a vantagem comparativa dos recursos minerais em uma vantagem competitiva sustentável, capaz de gerar benefícios sociais, econômicos e ambientais duradouros. Confira:
Professora, levando em conta que, em um futuro próximo, tenhamos essa confirmação de jazidas de terras raras, o Brasil tem chance de se posicionar como um player competitivo diante do que hoje é a China, tendo em vista que uma coisa é você produzir, e outra coisa é você ter a capacidade de refinar?
Sim, o Brasil tem condições de competir, mas eu faço algumas considerações. Competir não é só extrair, nós temos que extrair, agregar valor à cadeia produtiva para que seja competitivo em nível de não ficar no lock-in, que significa ‘concentração’, não ficar dependente de um mercado só, como estamos agora na China. Então, competir é separar, refinar e transformar em produto. Aí sim, entra-se numa condição de vantagem competitiva e não somente manter uma vantagem comparativa por ter a possessão. Para ter a vantagem comparativa e a vantagem competitiva, tem que apresentar justamente mais encaminhamentos nessa cadeia produtiva e não ficar só na base de extrair.
O único projeto em operação aqui no Brasil é na Serra Verde, em Goiás, com a produção de óxidos, mas ainda em consolidação de refino, que é de argila ziônica, onde não se tem muito risco para danos ambientais e tudo, mas mesmo assim teve todo o critério para início da exploração em 2024. Então, para que o Brasil se torne competitivo, principalmente ele tem que ter tecnologia fina de separação e metalização. E não somente para explorar, porque explorar nós sabemos: nós somos ricos em recursos naturais e nós temos vários exemplos de como o Brasil é exportador de vários commodities e depois importa os produtos que são industrializados e manufaturados com tecnologias de ponta em outros países. E isso acaba nos deixando em uma posição de exportador de commodities. Então, temos que ter uma política industrial para que essas plantas de separação, contratos de longo prazo, formação de técnicos, mão de obra qualificada possam chegar e ter essa qualificação e esse estudo.

Quais os desafios de se explorar as terras raras com critérios de sustentabilidade ambiental e respeito a comunidades locais, justamente uma das suas áreas de estudo?
Nós temos que ver que mineração só é aceitável com avaliação do ciclo de vida. Avaliar do começo ao fim todos os impactos a partir da viabilidade técnica, econômica, social, ambiental, com consulta prévia, com controle total de rejeitos, se acaso houver algum risco ao equilíbrio ambiental e à sociedade. A mineração, por si só, é muito agressiva ao ambiente e, normalmente, concentra muito capital intensivo nas mãos de poucos. No entanto, é um processo produtivo extremamente necessário a partir da condição de vida da economia hoje, levando em conta questões que envolvem consumo e oferta de bens. O ponto, então, é termos uma política sustentável.
Temos que ver o seguinte: quais são os exemplos que nós temos que nos espelhar e quais não? Um exemplo mais específico relacionado a produtos de terras raras é de Baotou, na China, na região da Mongólia, que realmente concentra a exploração. Como lá tem pouca governança ambiental, as leis ambientais não são muito rígidas. Logo, o processo de refino gerou um lago negro de rejeitos tóxicos. Mas, enfim, a China continua tendo essa vantagem competitiva por dominar esse mercado.
No Brasil, de cases negativos, temos Mariana e Brumadinho, rompimento de barragens, mortes e rios contaminados, por uma falta de fiscalização, de auditoria, de leis mais rígidas. Ou seja, não garantiu-se um processo de acompanhamento mais aprofundado com relação a essas questões de auditoria ambiental.
O estudo de Caracaraí, pela perspectiva inicial, exige análise de longo prazo.Temos que procurar saber se o depósito é de argila, de argila imônica ou de rocha dupla; como integrar a tecnologia; saber a abrangência das áreas de influências indiretas; como localidades e comunidades podem ser impactadas, caso haja vazamento; questões que envolvem lençois freáticos e cursos de rios, enfim. Todas essas questões devem ser avaliadas, principalmente no que tange às comunidades indígenas, e se envolve um conhecimento prévio, livre e informado e uma democratização de todas as informações – para que a sociedade decida racionalmente – e em respeito às leis e ao próprio modo de viver da sociedade. Não somente temos que ver o crescimento econômico, e sim o desenvolvimento socioeconômico e ambiental.
Já que a senhora mencionou casos em que houve falhas na política ambiental, pode citar casos bem-sucedidos?
Internacionalmente, existem dois casos emblemáticos em relação a terras raras. O primeiro é no Canadá, na exploração de níquel em áreas próximas a territórios indígenas. Houve um processo longo de estudos, com tecnologias escolhidas de forma criteriosa e, sobretudo, a realização da consulta prévia, livre e informada às comunidades impactadas. O resultado foi geração de empregos, integração com a população local e ausência de conflitos significativos, o que é um exemplo de boa prática.
No Canadá, existe um princípio jurídico reconhecido chamado “duty to consult and accommodate” (“dever de consultar e acomodar”) que recai sobre o Estado sempre que suas ações possam afetar direitos indígenas já estabelecidos ou reivindicados. Esse dever está fundamentado na Constituição canadense, Seção 35, e foi ratificado por decisões da Suprema Corte, em casos como o Haida Nation v. British Columbia.
O segundo caso ocorreu na Dinamarca, no final da década de 1990, com a exploração de diamantes. Também ali se aplicaram mecanismos de governança ambiental, participação comunitária, consultas adequadas e geração de benefícios econômicos de forma integrada à sociedade.
No Brasil, um exemplo relevante é o da Serra Verde, em Goiás. Trata-se de um projeto de terras raras que passou por anos de estudos, culminando em 2024 com a consolidação de um processo marcado pelo rigor ambiental. Houve licenciamento adequado, acompanhamento do ciclo de vida, consulta à comunidade e implementação de medidas de compensação. É um caso que mostra como a governança robusta, quando bem aplicada, pode conciliar crescimento econômico com desenvolvimento local, sem repetir erros de experiências mal conduzidas.
Como essa descoberta de potencial pode inserir o Brasil na cadeia global de transição energética?
A inserção do Brasil na cadeia global da transição energética depende, antes de tudo, de uma visão estratégica que considere a integração dos mercados internacionais e a transnacionalização das cadeias produtivas. Isso significa que não basta apenas extrair o recurso: é preciso investir em capital inicial robusto, estruturar políticas consistentes e estabelecer uma governança sólida que permita ao país transformar esse potencial em inserção real e competitiva. A mineração de terras raras e minerais críticos, indispensáveis à fabricação de turbinas eólicas, baterias para carros elétricos, equipamentos de defesa e uma série de tecnologias de ponta, só terá impacto se o Brasil conseguir internalizar etapas da cadeia e não se limitar à condição de mero exportador.
O grande desafio é evitar que essa exploração se converta em mais um enclave de recursos, como tantas vezes ocorreu em experiências anteriores de domínio do capital estrangeiro. Uma vez consolidada a lógica puramente exportadora, torna-se muito difícil reverter o processo sem uma política de longo prazo que avalie desde o início o ciclo completo de produção. É necessário pensar em cada fase: a identificação da mina, os investimentos em infraestrutura, a viabilidade econômica, o refino doméstico e a industrialização de alto valor agregado. Só assim será possível gerar ganhos duradouros para o país e, ao mesmo tempo, assegurar maior autonomia frente às pressões externas.
Isso exige contratos claros, com regras que determinem a participação do capital nacional, a transferência de tecnologia e a inserção gradativa em cadeias produtivas de maior sofisticação. O objetivo não deve ser apenas exportar minério bruto, mas chegar ao estágio de refino e produzir insumos que atendam setores-chave, como o eletroeletrônico, a mobilidade elétrica e a geração de energia limpa. Somente nesse patamar o Brasil conseguirá conquistar vantagens competitivas reais, fortalecendo sua indústria e criando empregos qualificados.
A integração com polos já existentes, como a Zona Franca de Manaus, pode ser determinante. Ao articular essa produção mineral com cadeias ligadas à bioeconomia e à biotecnologia, cria-se um ecossistema capaz de sustentar inovação e de consolidar o país como fornecedor estratégico não apenas de insumos, mas também de produtos finais indispensáveis à transição energética. Esse processo, porém, deve ser acompanhado de governança rigorosa, estudos de longo prazo e uma visão de desenvolvimento que privilegie o benefício local.
Por fim, acordos internacionais, como joint ventures, podem ser vantajosos, desde que desenhados sob marcos regulatórios que assegurem soberania nacional, cumprimento da legislação brasileira e ganhos efetivos para a sociedade. É esse equilíbrio, entre integração internacional e fortalecimento interno, que permitirá ao Brasil se inserir de forma duradoura e estratégica na cadeia global da transição energética.
Joint venture é um tipo de parceria estratégica entre duas ou mais empresas, geralmente de países diferentes, que se unem para desenvolver um projeto específico ou explorar um mercado em conjunto. Cada parte entra com recursos [que podem ser capital, tecnologia, expertise, infraestrutura ou acesso a mercado] e os riscos e lucros são compartilhados conforme o contrato estabelecido.
Quais as possibilidades econômicas, levando em conta a realidade local?
Roraima aparece na mídia nacional e na mídia geral como um estado sempre problemático, com exploração ambiental, com a migração, com escândalos políticos, e nós estamos tratando de estratégias de políticas públicas para promover o crescimento e desenvolvimento econômico de um estado que tem suas peculiaridades muito específicas. 46% das áreas do estado são terras indígenas. Então, um estado muito rico em recursos, mas todo esse potencial mineral – que são produtos estratégicos e cobiçados para exploração e inseridos em discursos políticos – estão em áreas indígenas.
Nós temos que considerar que qualquer questão que envolva avaliação de arrecadação, emprego, renda, encadeamento produtivo, estrutura e compensação, ela deve estar relacionada a partir de fundamentação técnica econômica. Então, o que a gente pode falar de arrecadação no tocante à questão das terras raras são só inferências ainda. Só depois de anos de licenciamento, nós vamos ver quais seriam os royalties da mineração, que é a compensação financeira pela exploração de recursos que envolve de 2% a 3,5% sobre a receita líquida. Isso é bem a longo prazo, só quando o estudo técnico-econômico estiver bem consistente.
O que nós temos que considerar é que mineração normalmente ela é intensiva em capital, mas normalmente gera poucos empregos permanentes. Essas atividades não geram mão de obra em nível de qualificação tão elevada, porque normalmente são mais para exploração. O que gera são muitos empregos temporários e a qualificação da mão de obra ela vem mais em nível de engenheiros, de geólogos, de técnicos e normalmente não se absorve essa mão de obra local. Pelo menos os exemplos que nós temos são assim. Então, isso aí tem que ser um processo e, se tiver viabilidade, tem que absorver mão de obra local.
A infraestrutura do Linhão de Tucuruí representa um avanço importante, mas ainda convivemos com gargalos logísticos sérios, como os problemas de transporte nas BR-174 e BR-210, além de deficiências na logística portuária. Esses pontos precisam ser integrados a uma política industrial que contemple transporte, energia e logística como parte de um mesmo planejamento. Acima de tudo, é necessário estabelecer contrapartidas claras, sempre a partir de estudos que comprovem a viabilidade técnica, econômica e ambiental da exploração dos minerais terras raras.
Como isso poderia beneficiar a Zona Franca de Manaus?
O potencial de exploração de terras raras em Caracaraí pode ter reflexos diretos sobre a Zona Franca de Manaus [ZFM], sobretudo pela sua base já consolidada de produção industrial. Como polo eletroeletrônico, a ZFM dispõe de experiência tecnológica e de infraestrutura que podem ser integradas a uma política industrial mais ampla, voltada não apenas ao refino dos minerais, mas também à fabricação de componentes estratégicos ligados à energia renovável e à transição energética. Isso evitaria que a exploração se limitasse à condição de enclave de recursos e ampliaria o valor agregado da produção.
O papel da ZFM é central nesse cenário porque, além de sua vocação para a indústria eletroeletrônica, pode se articular com novas cadeias ligadas à bioeconomia e à biotecnologia. A integração entre mineração, energia, logística e inovação tecnológica cria a possibilidade de uma política industrial diversificada, que vai além do simples refino e busca conectar o setor mineral a outros segmentos da economia amazônica. Programas de Pesquisa e Desenvolvimento, apoiados por universidades e centros de inovação, também seriam fundamentais para consolidar esse movimento.
Nesse contexto, acho essencial que a política industrial estabeleça contratos claros, assegure conteúdo tecnológico nacional e defina contrapartidas socioeconômicas e ambientais. O objetivo deve ser integrar toda a cadeia produtiva, que vai da extração ao refino e à fabricação de produtos finais, de modo a atender tanto ao mercado local quanto ao internacional. Isso não apenas ampliaria a competitividade da Zona Franca de Manaus e das Áreas de Livre Comércio da Amazônia, mas também geraria benefícios sociais, ambientais e econômicos para as comunidades envolvidas.
O desafio é evitar a fragmentação da cadeia produtiva, fenômeno comum em processos de globalização que desarticulam etapas de maior valor agregado. Se bem conduzido, esse processo pode transformar a vantagem comparativa da Amazônia, que é a disponibilidade de recursos, em uma vantagem competitiva duradoura, baseada em inovação, sustentabilidade e inclusão social.
A exploração de terras raras em Caracaraí poderia gerar a chamada ‘maldição dos recursos’? Como evitar que isso aconteça?
Transformar a renda mineral em benefício real para a sociedade é um desafio histórico. A mineração, somente quando voltada à exportação, costuma estar associada ao que se chama de “maldição dos recursos”. Esse fenômeno está ligado à formação de enclaves econômicos: quando se extrai o recurso, mas os passivos ficam, enquanto os lucros são apropriados por grandes grupos, geralmente estrangeiros, que exploram mão de obra barata e precarizada. O resultado costuma ser devastador, com impactos socioeconômicos e ambientais profundos. Exemplos não faltam: basta lembrar o caso de Serra Pelada ou o que ocorre no território Yanomami. Invasões desordenadas, violência, prostituição e degradação ambiental sem benefícios duradouros para a população local são grandes exemplos.
A chamada maldição dos recursos descreve exatamente esse paradoxo: países ricos em bens naturais frequentemente crescem menos e enfrentam mais problemas sociais e institucionais do que países com menos recursos. Em inglês, o termo é “resource curse”. Ele está associado à dependência econômica, desigualdade fiscal, fragilidade institucional e problemas de governança. Há exemplos clássicos: a Venezuela, extremamente dependente do petróleo, mergulhou em crise quando o preço internacional caiu; a Nigéria, apesar de décadas de riqueza petrolífera, não conseguiu melhorar de forma consistente seus indicadores sociais; e Angola, que experimentou rápido crescimento com o petróleo, mas sem sustentação em desenvolvimento social.
Para evitar que algo semelhante ocorra em Caracaraí, caso se confirme a viabilidade econômica da exploração de terras raras, é indispensável adotar uma política de Estado robusta. Isso significa transformar a renda mineral em conhecimento, educação, conservação ambiental e desenvolvimento industrial local. Parte da receita precisa ser destinada à pesquisa e desenvolvimento, restauração ambiental e fortalecimento de cadeias produtivas internas.
Outro ponto crítico é lidar com a volatilidade dos preços internacionais. Produtos oligopolizados e altamente concentrados, como as terras raras, estão sujeitos a oscilações que podem desestruturar mercados dependentes. A única forma de enfrentar essa vulnerabilidade é por meio de uma política articulada, integrando governança, estabilidade econômica e agregação de valor à cadeia produtiva. Só assim será possível evitar que a exploração se limite a “cavar e exportar”, perpetuando desigualdade e passivos ambientais, e garantir que ela se traduza em desenvolvimento sustentável e inclusão socioeconômica.
Sobre a entrevistada
Sandra Maria Franco Buenafuente já foi professora do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Roraima, onde também atuou no Programa de Pós-graduação Sociedade e Fronteira. Economista formada pela Universidade Federal do Pará, construiu uma sólida trajetória acadêmica internacional. É mestre em História Econômica e doutora em Economia, com ênfase em Economia Internacional e Desenvolvimento pela Universitat Autònoma de Barcelona (UAB), título reconhecido pela Universidade de São Paulo (USP). Além disso, realizou pós-doutorados no Centre for the Environment, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e na Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF).
Sua área de atuação concentra-se em economia ecológica, desenvolvimento e políticas ambientais, com foco especial na Amazônia. Pesquisa temas ligados à sustentabilidade socioeconômica, serviços ambientais, povos indígenas e conflitos socioambientais, sempre articulando ciência econômica com as especificidades sociais e culturais da região amazônica.
Sua produção científica inclui artigos, livros e relatórios técnicos voltados para a realidade amazônica. Recentemente, publicou trabalhos sobre o lavrado de Roraima e suas potencialidades socioeconômicas para povos indígenas, além de estudos sobre fortalecimento e expansão das línguas Macuxi e Wapichana no estado.



