Pecuária na Amazônia: o desafio de crescer sem destruir a floresta

Na terceira e última reportagem da série: “Caminhos para preservar e produzir na Amazônia”, vamos abordar a pecuária. Como ser mais sustentável, ao mesmo tempo em que o país se mantém na liderança mundial de exportações, com estados da região tendo papel importante neste cenário? E a tão demandada rastreabilidade da carne? Já é possível alcançá-la?
Foto: Sara Leal/ IPAM

Por Thalita Eduarda, PIM Amazônia

Assim como o setor de grãos, tema da primeira reportagem da série “Caminhos para preservar e produzir na Amazônia”, a pecuária é conhecida por um longo histórico de associação ao desmatamento da floresta (para transformação em áreas de pasto) e à emissão de gases do efeito estufa. Isso porque o Brasil sempre esteve entre os principais países produtores e exportadores de carne bovina, sendo, atualmente, o segundo maior produtor e o maior exportador mundial, superando até mesmo países como Estados Unidos e Austrália.

Para se ter uma ideia, segundo dados da Pesquisa Produção da Pecuária Municipal 2022, divulgados no último mês de setembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o país terminou o ano passado com 234,4 milhões de cabeças de gado, um recorde – crescimento de 4,3% em relação a 2021.

Embora a principal região produtora de gado seja o Centro-Oeste, com 77,2 milhões de animais, sendo o Mato Grosso o maior estado produtor (34,2 milhões de cabeças), os dados do IBGE mostram que o maior aumento de rebanho ficou com o Norte, destacando os pastos de Rondônia, Pará, Tocantins e Acre.

Porém, apesar de haver o crescimento do rebanho, o processo de expansão das áreas de pastagens reduziu em 5,7% para aproximadamente 154 milhões de hectares, resultado do investimento em tecnologia, que vem sendo aliada importante na busca por uma pecuária mais sustentável, como explica Fernando Sampaio, diretor de sustentabilidade da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec).

“A gente continua produzindo mais carne, mas esse processo de expansão que aconteceu no passado parou. Na verdade, a pecuária hoje tá reduzindo a área que ela ocupa, você tem pastagens antigas que estão virando agricultura, principalmente, soja, eucalipto e cana-de-açúcar. Ela está diminuindo, ela continua produzindo mais porque você tem mais tecnologia. E isso é incorporado na produção”, explica.

Fernando Sampaio, diretor da Abiec. Foto: Divulgação/ Abiec

Maioria das propriedades ainda tem menos de um boi por hectare, diz pesquisador

Apesar da redução das áreas de pastagens no país, o diretor executivo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), André Guimarães, avalia que a pecuária hoje na Amazônia ainda produz muito pouco por área aberta. Para ele, é possível aumentar substancialmente a produtividade da pecuária na Amazônia sem derrubar uma árvore. Ou seja, o desafio é prover aos produtores rurais um conjunto de ferramentas, para que a atividade obtenha sucesso seguindo as diretrizes da sustentabilidade. “Infelizmente, a pecuária hoje na Amazônia ainda é muito ineficiente, ou seja, ela produz muito pouco por área aberta. Nós temos uma lotação de pasto de menos de uma unidade animal por hectare e essa é uma lotação de pasto muito baixa. A gente tem exemplos que já foram aplicados em algumas fazendas, que têm mais acesso à tecnologia, onde esse número pode chegar de 3 a 6 unidades animal/hectare. O que multiplica por várias vezes a produtividade que nós temos hoje na na Amazônia”, pontua.

André Guimarães aponta que os caminhos para buscar essa pecuária sustentável na região estão ligados à fiscalização do cumprimento do Código Florestal, à assistência técnica oferecida aos produtores rurais e ao crédito oferecido. “Com esses três elementos, o comando e controle do estado para cumprimento do Código Florestal, o acesso a assistência técnica qualificada e continuada e acesso a crédito, é possível que se tenha uma grande intensificação da pecuária, consequentemente produzindo-se mais e demandando-se menos área. O que seria o ideal para diminuir a pressão no recurso natural da floresta da Amazônia.” destaca.

O diretor comentou ainda que a rastreabilidade dos animais, marcada pelo monitoramento e registro das informações dos rebanhos, do início ao fim da cadeia produtiva, é muito importante, porém, precisa estar associada às medidas elencadas acima, para ser efetiva. “É importante a rastreabilidade, desde que ela venha associada a outras ações e meios para que esses produtores cheguem ao nível de atendimento aos requisitos do mercado que exige o rastreamento, então a rastreabilidade.” afirmou André Guimarães.

Vale destacar que o desmatamento por pressão da agropecuária respondeu por quase 96% de todos os desmatamentos validados pela plataforma MapBiomas Alerta em 2022, no Brasil, segundo o Relatório Anual do Desmatamento divulgado pelo projeto. Na Amazônia, o maior desmatamento detectado, em 2022, tem área de 3.580 hectares e ocorreu no município de Colniza, no estado do Mato Grosso – o estado com maior rebanho bovino do país. No próximo dia 6 de outubro, o MapBiomas divulgará dados ainda mais recentes sobre agropecuária no Brasil, que serão repercutidos pela PIM Amazônia.

Gás metano – Além do desmatamento ser o principal responsável pela emissão de gases do efeito estufa, o próprio sistema de digestão do gado contribui para esse problema, já que, durante a digestão, o animal emite gás metano pela boca – e, não por acaso, o Brasil tem lugar de destaque na emissão desse tipo de gás, sendo o 5º maior emissor mundial de metano. Esses dados são do O Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), uma iniciativa do Observatório do Clima que compreende a produção de estimativas anuais das emissões de gases de efeito estufa (GEE) no Brasil.

Mercosul e União Europeia seguem sem conseguir fechar acordo comercial

Embora o Brasil seja o maior exportador de carne, exportando 212 milhões de toneladas – de acordo com os dados de agosto de 2023 da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec) – para grandes mercados, como os da China, Chile e Estados Unidos, o país ainda enfrenta dificuldades para entrar em mercados, como por exemplo, o da União Europeia.
Isso por uma questão antiga, a dificuldade de rastreabilidade da origem do produto. Importante destacar que para vendas dentro do Brasil, a identificação da origem do animal não é obrigatória.

Até hoje, as barreiras de acesso ao mercado no Brasil sempre foram puramente sanitárias. Em outras palavras, para enviar um produto, é preciso demonstrar que a carne não está contaminada com alguma doença, e o Brasil sempre conseguiu atender a maior parte das demandas nessa parte. Contudo, pela primeira vez, a restrição que a União Europeia impõe sobre a carne brasileira é ambiental.

“Hoje a União Europeia é o primeiro mercado do Brasil que criou uma restrição que ela não é sanitária, ela é ambiental. Você vai ter que comprovar que essa carne não tem desmatamento para poder acessar o mercado”, comenta Fernando Sampaio.

Lula classifica como inaceitáveis as exigências da União Europeia para fechar acordo com o Mercosul. Foto: Joédson Alves/ Agência Brasil

Há décadas, o Mercosul e a União Europeia discutem a possibilidade de um acordo comercial, que não consegue avançar efetivamente. Em mais uma tentativa de tratar do tema e buscar uma agenda comercial, o presidente Lula esteve com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e com o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, durante a última reunião do G20, em Nova Delhi, na Índia, realizada neste mês de setembro. Na conversa, Lula reiterou reclamações contra um instrumento apresentado no início deste ano pela União Europeia, com novas condicionantes para o acordo em torno de possíveis sanções relacionadas a questões ambientais. Para o brasileiro, as exigências são inaceitáveis e desconsideram credenciais do Brasil em torno do tema. Até o fechamento desta edição, as tratativas para o acordo não haviam avançado.

SISBOV – Uma alternativa criada para conseguir fazer a exportação da carne brasileira, é a adesão voluntária de produtores brasileiros ao Sisbov – Sistema Brasileiro de Identificação Individual de Bovinos e Búfalos (SISBOV), que garante a identificação individual de bovinos e búfalos. Atualmente 4,5 milhões de animais estão cadastrados no sistema, e só assim conseguem fazer sua carne chegar a alguns países da União Europeia.

Vale destacar que além do cadastro no Sisbov, para exportar para a Europa, o estado ainda precisa receber uma autorização de um veterinário europeu. Atualmente, os estados Mato Grosso, Goiás e São Paulo são autorizados a exportar.

Mercado interno – Segundo os dados recentes da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec), o mercado interno segue como o grande consumidor da carne bovina produzida no país. Cerca de 71,48% de toda a carne foi consumida pelos brasileiros, perfazendo um consumo per capita de 36,73 kg por habitante, em 2022.

Pará busca ser o primeiro estado com 100% do rebanho bovino rastreado

Durante o evento “Diálogos Amazônicos”, em agosto deste ano, em Belém, o governador do Pará – Estado que possui 26 milhões de cabeças de gado, e é o segundo maior rebanho bovino do Brasil, conforme os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) – anunciou o projeto “Selo Verde”, que visa rastrear todo o rebanho de bois do estado. O projeto contempla ainda o controle do pecuarista por intermédio da brincagem do gado, o cadastro ambiental rural (CAR), licença da atividade e certificação de vigilância sanitária, por serem considerados componentes necessários para a competitividade de mercado.

“A nossa meta é que nós possamos ser o primeiro estado do Brasil, em larga escala, que terá 100% do seu rebanho bovino rastreado no estado do Pará. Isso significa rastrear 26 milhões de animais, com chipagem, com brincagem. E que todas as propriedades terão a oferta deste serviço de forma gratuita e quem estará custeando isso será a indústria da carne”, afirmou Barbalho, à época, destacando que existem cerca de 300 mil propriedades rurais no estado.

Ainda durante o evento, Helder Barbalho, governador do Pará, lançou o Cadastro Ambiental Rural Automatizado – CAR 2.0, que já permitiu a validação, de uma vez só, de 43 mil cadastros ambientais rurais (CAR). A iniciativa é inédita no país, já que, até hoje a avaliação do CAR é feita manualmente. Vale ressaltar que o CAR é instrumento de registro público, por meio do qual é feita a análise de passivos e ativos ambientais, fundamental no processo de regularização de propriedades rurais. Por ser feito manualmente, muitas vezes esses registros são alvo dos grileiros de terras, que buscam fraudar os documentos para tentar regularizar terras ilegalmente ocupadas e desmatadas para pastagem.

Fernando Sampaio, diretor de sustentabilidade da Associação Brasileira (Abiec), acredita que, embora o projeto se trate de uma iniciativa criada sob o ponto de vista de política pública, as expectativas são que ele ajude a melhorar a entrada do Brasil nos mercados internacionais, como o da União Europeia. “O Selo Verde pega essa informação [a origem do animal] e vê se esses lotes passaram por algum tipo de desmatamento. De certa forma, é uma ferramenta que dá essa garantia. Mas ele foi feito do ponto de vista da política pública. A ideia é identificar quanto de problema você tem potencialmente na cadeia pecuária e como é que corrige. Mas a gente entende que pode ajudar nesse acesso ao mercado, além da questão da sustentabilidade,” comentou.

Carne com certificação de origem à venda em supermercado de Belém/Pará. Foto: Ana Danin

Iniciativa do MPF tenta dificultar que carne de origem ilegal chegue aos consumidores

Uma das alternativas criadas para impedir que as carnes de origem ilegal chegem às mesas dos consumidores finais é o projeto “Carne Legal”, lançado em 2009, pelo Ministério Público Federal do Pará, hoje extensivo a toda a Amazônia. O objetivo do projeto é monitorar e fazer o controle ambiental da cadeia produtiva da pecuária na Amazônia. Como é quase impossível identificar todos os criadouros ilegais, a iniciativa do MPF é realizada junto aos frigoríficos da região, com a fiscalização para que não comprem carnes de origem ilegal.

Segundo Daniel Azeredo, procurador do Ministério Público Federal (MPF), o projeto Carne Legal nasce da constatação do MPF, ainda em 2009, que a cadeia produtiva da pecuária estava, em muitos casos, de alguma maneira associada às práticas de descumprimento da legislação brasileira, como o desmatamento ilegal, trabalho escravo, invasão de terras indígenas e áreas de populações tradicionais. “Não havia nenhum controle do mercado, então se você praticava um desmatamento ilegal, no dia seguinte, você vendia o seu produto muito facilmente para todas as empresas e isso abastecia o supermercado do país inteiro. A partir do projeto, os frigoríficos foram obrigados a controlar os seus fornecedores. Então eles tinham que olhar e verificar se havia um desmatamento legal, se aquela área estava interditada ou se havia qualquer tipo de descumprimento da legislação socioambiental do país”, comenta Daniel Azeredo.

Ele explica que esses frigoríficos precisam assinar Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) com o MPF, que asseguram que o gado tenha sido criado em áreas que tenham Cadastro Ambiental Rural (CAR) e outras exigências. Em caso de descumprimento, o acordo prevê multa correspondente a 50 vezes o valor da arroba de boi gordo, baseado no índice da BM&F-Bovespa, por cabeça de gado adquirida fora dos padrões estabelecidos pelo termo.

“Os resultados foram animadores. [após o projeto Carne Legal ser lançado] Pela primeira vez, o desmatamento chegou na Amazônia a menos de 10.000 km². Em 2012, chegou a menos de 5.000 km², que era um número muito baixo pra época e depois nós ficamos, entre 2013 e 2018, entre 6 e 7.000 km². O que também era um número bem abaixo da expectativa do que a gente tinha é em relação ao projetado inclusive em acordos assinados pelo Governo Federal”, afirma Daniel Azeredo a respeito dos resultados do projeto logo após ser lançado.

Recentemente, grandes redes de supermercados da região também foram convidadas a participar do projeto Carne Legal. Apesar dos bons resultados (a estimativa do MPF é de que hoje 80% do abate feito na Amazônia estejam sob o regime de TACs), o projeto ainda enfrenta o desafio de combater os chamados “fornecedores indiretos” – gente que vende animais criados em áreas ilegais para serem engordados em fazendas legais. Outro desafio é combater a chamada “lavagem de gado”, que ocorre quando uma fazenda bloqueada pelo frigorífico vende o rebanho como se fosse de outra, que é legal.

Daniel Azeredo destaca ainda que só há um caminho para ter uma pecuária na Amazônia sem promover o desmatamento ilegal: a rastreabilidade tecnológica. “Existem vários tipos de tecnologias sobre isso [rastreabilidade], existem vários países que adotam modelos de rastreabilidade tecnológica, na qual você precisa rastrear o animal desde o momento em que ele nasce, até o momento em que ele é abatido, para ter a plena certeza de que aquele animal em nenhum momento passou por uma área desmatada ilegalmente de forma recente. Isso é o que o país precisa para realmente ter uma pecuária plenamente sustentável.” finaliza.

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