Quase 30% das 50 cidades mais violentas do país estão na Amazônia 

Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra ainda que, avaliados individualmente, mais da metade dos 772 municípios amazônicos têm taxas de mortes violentas intencionais superiores à média nacional
Operação Curupira em Novo Progresso (PA) - Foto: Paulo Cezar / Ag. Pará

Catorze das 50 cidades mais violentas do Brasil estão localizadas na Amazônia Legal, é o que afirma o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho de 2023, que considerou para o ranking os municípios com mais de 100 mil habitantes. Como protagonistas da região nessa lista estão Sorriso (MT), em 6º lugar com taxa de Morte Violenta Intencional (MVI)* de 70,5; Altamira (PA), em 7º lugar, MVI de 70,5; Macapá (AP), em 8º lugar, com MVI de 70; Itaituba (PA), em 15º lugar, 61,6; e Manaus (AM), na 24ª colocação, com MVI 53,4.  

A categoria “Mortes Violentas Intencionais” (MVI) é utilizada como base em todo o Anuário e corresponde à soma das vítimas de homicídio doloso, latrocínio (roubo seguido de morte), lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenções. As outras cidades amazônicas presentes no ranking das 50 mais violentas são: Marabá (PA), em 26º lugar, com 51,8 de MVI; Santana (AP), em 31º lugar, com 49,4 de MVI; Paragominas (PA), em 32º lugar, com 49,3 de MVI; Parauapebas (PA), em 35º lugar, com 46,9 de MVI; Caxias (MA), em 37º lugar, com 46,5 de MVI; Castanhal (PA), em 45º lugar, com 44,2 de MVI; Porto Velho (RO), em 47º lugar, com, 42,1 de MVI; Ji-paraná (PA), em 48º lugar, com 41,8 de MVI; e em 50º lugar, Marituba (PA), com 41,6 de MVI.

Ainda que esses municípios tenham suas particularidades, é possível traçar uma série de características que se correlacionam e facilitam a compreensão da presença de tais localidades no ranking, em temáticas que vão desde questões fundiárias e crimes ambientais, passando pela atuação de facções criminosas e disputas por territórios em busca de poder, até estruturas que ligam a rota do narcotráfico à violência urbana. Cada uma dessas problemáticas se entrelaça, mostrando que a realidade do crime organizado na Amazônia é uma cadeia complexa, que tem se fortalecido ao longo das décadas.  

Professor e pesquisador do Fórum de Segurança Pública, Aiala Colares – Foto: Danilo Ramos

É isso que defende o Doutor em Geografia (UFPA), professor e pesquisador da Universidade do Estado do Pará e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Aiala Colares. Ele aponta que o que acontece hoje na Amazônia, em termos de violência, não foi desenhado nos últimos anos, mas se trata de uma construção que começa desde a década de 1960.  

“A maneira com que foi pensado o desenvolvimento para a Amazônia é que está gerando essas consequências. Nós estamos acompanhando uma evolução dos processos de violência sobre os povos da floresta e sobre o ecossistema, que foi pensada lá atrás. Só que agora, o avanço do capitalismo na região está trazendo formas mais modernas de se apropriar dos recursos e de manifestar a violência”, expõe o professor.  

Na sua tese de doutorado “Do poder das redes às redes do poder: Necropolítica e Configurações Territoriais Sobrepostos do Narcotráfico na metrópole de Belém-PA”, o professor explica que o narcotráfico, um dos motores da violência na Amazônia, é uma questão urbano-regional que se apresenta não só de maneira política, como também econômica e cultural, submetendo um impacto significativo sobre as metrópoles.

O objetivo central da tese é analisar os conflitos de territórios na capital paraense, a partir das relações de poder do narcotráfico.  

Belém (PA) – Foto: Augusto Miranda/Ag. Pará

No anuário publicado em 2023, Belém não entrou para o ranking das 50 cidades mais violentas do Brasil, por outro lado, das 14 cidades mais violentas da Amazônia, metade está no Pará. 

Pará tem corredor geográfico para o transporte de cocaína de países andinos

Uma das justificativas que Aiala oferece como origem para o histórico de violência no Pará se relaciona com a questão fundiária. Durante as décadas de 1960 a 1980, o estado recebeu uma série de imigrantes, em busca de melhores condições de vida, para trabalharem na agricultura e no garimpo, como é o exemplo do antigo garimpo de Serra Pelada.  

Somado a isso, no mesmo período, a região lidou com o processo de federalização de terras e depois com a demarcação de terras indígenas e a criação de unidades de conservação e preservação ambiental, aumentando o número de terras sob o domínio da União, as denominadas terras devolutas.  

Essa sequência de acontecimentos resultou para o estado do Pará, um embate histórico por territórios federais, o que permitiu o avanço de figuras como grileiros (como são chamadas as pessoas que falsificam documentos para se apossar de terras públicas ou particulares) e posseiros, com o intuito de reivindicar esses espaços, seja para a exploração do setor agropecuário ou expansão do garimpo ilegal.

No texto de Violeta Loureiro e Jax Nildo Pinto, “A questão fundiária na Amazônia”, é exposto que, desde a década de 60, são comuns atividades que possuem por objetivo a grilagem, seja por meio da venda de uma mesma terra a compradores diversos ou por revenda de títulos de terras públicas a terceiros como se elas tivessem sido postas legalmente à venda através de processos licitatórios, entre outros métodos para a posse indevida de terras. 

“Nos últimos anos, claro, a questão ambiental ligada à ideia da defesa da floresta, no enfrentamento ao garimpo, colocou mais lenha nessa fogueira. Ou seja, os conflitos ficaram mais efervescentes em função de que houve uma pressa por determinados grupos sociais em acelerar o processo de desmatamento, de acelerar a abertura de novas áreas feitas de garimpo e de armar essas pessoas “, destacou o professor.  

Município de Chaves (PA) – Foto: Bruno Cecim/Ag.Pará

Aiala alerta que não basta analisar a problemática da violência pela ótica do garimpo, ou do desmatamento, ambos estão conectados com outras atividades, sendo grande parte delas influenciadas pelo narcotráfico. O professor explica que, no Pará, existe uma disputa pela “rota do tráfico” por facções criminosas que envolve principalmente cidades como Altamira, Barcarena, Itaituba, Belém, Santarém e Marabá. 

Segundo informações do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as facções Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV), originárias do Sudeste do país,  intensificaram suas atividades não só na região paraense, mas também em estados como o Amazonas, a partir dos anos de 2010, fazendo com que a região passasse a se configurar como um corredor geográfico para o transporte de cocaína de países andinos (Bolívia, Peru e Colômbia) para o resto do Brasil. 

Um dos fatores que fortaleceram a construção desse cenário foi a associação de facções do narcotráfico a lideranças de grupos de crimes ambientais, como madeireiros e garimpeiros, além das alianças firmadas com integrantes do sistema prisional, que hoje lida com uma série de problemáticas para sua manutenção.  

De acordo com Aiala, é difícil romper com essa dinâmica por se tratar de um sistema que se retroalimenta. “O crime organizado se fortalece no Brasil, porque há uma política de encarceramento em massa, esse encarceramento em massa é o que fortalece o crime organizado”, aponta o professor. 

Hoje o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, atrás dos Estados Unidos e da China. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a população nas penitenciárias cresce em um ritmo de 8,3% ao ano. A expectativa é que em 2025 o número de detentos chegue a 1,5 milhões. A superlotação dos presídios e as condições desumanas de convivência são alguns dos fatores que favorecem a formação de facções dentro das próprias penitenciárias.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023), a população de encarcerados no sistema prisional é composta por 68,2% negros,  95% indivíduos do sexo masculino e 62,8% pessoas na faixa de 18 a 34 anos.

Taxa de mortes violentas intencionais na região é 54% maior na região

Garimpo ilegal Brasil – Foto: Gustavo Basso

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 425 municípios da região amazônica possuem uma média de morte violenta de grau intencional superior à nacional, o que coloca a Amazônia Legal com uma taxa de mortes violentas intencionais (MVI) 54% superior ao resto do país. Na prática, significa que há cerca de 34 mortes a cada 100 mil habitantes na região, enquanto no restante do Brasil a taxa, em média, é de 22 mortes. 

De acordo com o professor Aiala Colares, o poder do narcotráfico deu condições para que outros braços do crime organizado começassem a montar estruturas a partir de bases operacionais em locais estratégicos. 

“No oeste do Pará, por exemplo, não há domínio por conta do garimpo por parte do crime organizado, mas há um comércio do crime organizado na região do garimpo, através da venda da droga. Como também, há narcotraficantes que utilizam pistas de pouso da estrutura do garimpo para aterrissar com aeronaves descarregando cocaína. Então, há uma conexão”, evidenciou o professor. 

Por fim, esse cenário reflete diretamente na violência urbana, pois é nas grandes metrópoles que se encontra o subsídio econômico para movimentar as relações de poder. É essa relação entre o narcotráfico e as atividades de exploração de recursos naturais que Aiala intitula de “narcoecologia”.  

“O narcotráfico não age sozinho. Não é só a economia da droga, mas a economia da droga ligada ao garimpo, ligada à extração ilegal de madeira, ligada, inclusive a produção de soja, ligada a outras atividades que causam os crimes ambientais e que geram conflitos fundiários”, enfatizou o professor.  

Por outro lado, embora a realidade de cada região se entrelace, cada uma delas possui suas próprias singularidades. Não é possível afirmar, por exemplo, que a cidade  de Sorriso, que liderou o ranking de municípios amazônicos mais violentos (70,5 MVI), lide com a mesma realidade do narcotráfico e mercado de cocaína como acontece mais ao norte do país. Por sua vez, ela, que é conhecida como a capital brasileira do agronegócio, enfrenta milícias em disputas fundiárias e grupos armados em nome de grandes empreendimentos.  

Amapá surge como o estado mais violento do país em 2022

Dentre os estados brasileiros, o Amapá saiu na frente como o  mais violento em 2022, com taxa de MVI de 50,6 por 100 mil habitantes, mais do que o dobro da média nacional.  O professor Aiala Colares explica que, no Amapá, facções como o PCC e CV não possuem a mesma influência que no Pará, por exemplo, porque já existem facções narcotraficantes locais, como a União Criminosa do Amapá e Família Terror do Amapá que, segundo ele, dominam o território. Além disso, o professor avalia que existe uma narrativa local ligada ao militarismo policial, que também contribui para a violência no estado.

“O Estado combate a criminalidade lá (no Amapá) de uma forma bastante violenta. É a lógica da repressão. Impera ainda no estado uma narrativa muito ligada ao militarismo. É possível perceber que a violência letal policial é a maior do Brasil no Amapá, justamente por conta disso”, esclarece o professor. 

Como informado por Isabela Sobral, supervisora do núcleo de dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, vale destacar que o estado do Amapá possui 16 municípios, dos quais apenas dois possuem uma população superior a 100 mil habitantes (Macapá e Santana), justamente os municípios do estado que estão na lista das 50 cidades mais violentas do Brasil. Essas mesmas cidades, segundo os dados do Censo do IBGE de 2022, reúnem 550 mil habitantes, cerca de 75% da população do Amapá. 

Para reverter essa conjuntura, Aiala Colares ressalta que não é possível ter uma política pública generalizada, embora a solução passe pela parceria entre o governo federal, estados e municípios da região.

“É preciso um pacto federativo que envolva a União, os estados amazônicos e os municípios, pensando conjuntamente estratégias eficazes de enfrentamento a violência e as atividades ilegais. […] E, por fim, pensar em modelos de desenvolvimento alternativos que busquem equilibrar essa relação, mas que partam do princípio de que educação é o elemento central para se construir esse processo”, conclui o professor.  

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