“O meu grande desafio era: nós teremos um chocolate fino na terra do cacau”

Fábio Sicília é chef de cozinha, chef chocolatier e sommelier, com formação na I.C.I.F. (Italian Culinary Institute For Foreigners) em Piemonte na Itália, e na Lenôtre de Paris, uma escola de culinária francesa renomada em todo o mundo. Juntamente com sua irmã, Ângela Sicília, são criadores do conceito de cozinha Ítalo-Amazônica, que pode ser encontrada no menu do restaurante Famiglia Sicília, localizado na Av. Conselheiro Furtado, 1420 – Batista Campos, em Belém do Pará há mais de 30 anos.
Em 2004, Fábio decidiu empreender uma expedição pela transamazônica, com o objetivo de conhecer o município de Medicilândia, que na época era o maior produtor de cacau do Brasil. Durante essa jornada, ele percebeu que ninguém estava produzindo chocolate na terra do cacau, uma fruta autóctone (nativa) e base para a produção do chocolate.
A partir dessa descoberta, Sicília decidiu criar a Gaudens Chocolates, com objetivo de produzir chocolates de alta qualidade, feitos no Pará e levados para o mundo. Recentemente, a Gaudens recebeu um prêmio internacional da Academia do Chocolate, em Londres, com a combinação de duas frutas nativas da região Amazônica: o cacau e o cupuaçu. Conheça mais dessa bela história de empreendedorismo na entrevista exclusiva concedida à PIM Amazônia.

QUAL A ORIGEM DO SOBRENOME SICÍLIA?
Bom, meu pai é de origem italiana, exatamente da região da Sicília. Para você ter uma ideia, o pergaminho original pertence à família até hoje, data do ano de 1486. Ele vem para o Brasil no pós-guerra tentar uma vida nova, como todo imigrante. Ele conhece a minha mãe, mineira, no interior do Triângulo Mineiro. E aí eu venho carregando esse nome desde então.

” O meu grande desafio era: nós teremos um chocolate fino na terra do cacau”


Nasci em 1970. Meus pais tinham um restaurante que sempre foi o negócio secundário do meu pai, onde minha mãe sempre ficou à frente e ele ficava na área de vendas. Viemos para o Pará em 1977, abrimos restaurante em Marabá. Na época, foi realmente uma aventura. Ele desbravou a Transamazônica.
Em 1979, nos mudamos para Belém porque minha mãe engravidou lá. Nasce a minha irmã, mais uma com legado Sicília para carregar, e então demos uma pequena pausa no restaurante. Mas, em 1983 fizemos um novo restaurante em Belém que se chamava La Bella Sicília. Esse foi o nosso marco inicial em Belém, com uma tradição que vem da década de 1960. Quando foi em 1986, meu pai veio a falecer e eu assumo os negócios junto com a minha mãe, me emancipando aos 15 anos de idade e me torno então um restaurateur.
Quando nós começamos, nós estávamos dentro de um restaurante no Clube do Remo, aí tem uma relação histórica com o clube tradicional da cidade.
Em 1989, nós vamos para a rua, pois o objetivo é atender a todos. Então, inauguramos na Boaventura da Silva, mas lá foi um ponto que nós ficamos somente seis meses e nos transferimos para a Conselheiro Furtado, a tradição que está aí há mais de 34 anos.
Eu cheguei a fazer engenharia química em 1989, mas não concluí. Quando foi em 2002, eu fui para a Europa fazer um curso em Le Cordon Bleu [Paris]. Cheguei a fazer todo o primeiro módulo e percebi: “O que um italiano está fazendo na França ?”. O curso era fantástico, mas eu queria mais sobre a cozinha italiana, porque era a nossa tradição no restaurante.
Em 2003, no meu estágio num restaurante estrelado Michelin, eu conheci uma fruta que eu fiquei apaixonado: Physalis. Volto para o Brasil. Ela custava 60 euros o quilo, em 2003. Apaixonado pela fruta, encontro ela em São Paulo a um terço do valor, mas ainda assim custava R$ 54 o quilo. Chego em Belém, e a apresento para minha equipe e digo: “Vou ensinar a vocês tudo o que aprendi nos cursos da Europa”. A cara de decepção foi geral.
Por que eu conto essa história? Porque esse é o marco onde entra a história do chocolate na minha vida.
Ao apresentar a fruta, eles dizem: “Ah, Fábio, isso é camapú”. Eu digo: “Vocês conhecem?” Eles dizem: “Isso é mato, tem no quintal de casa”. Eu na hora não acredito. Eles falam para eu procurar no Mercado Ver-o-Peso, e lá eu encontro por R$ 1 o quilo. Eu não acredito que na Europa se paga 60 euros o quilo para um mato que nós temos aqui no quintal de casa. Então eu me lembrei do Cacau, que é primo do cupuaçu, e descubro que o Pará tinha um município que era o maior produtor de cacau do Brasil na época, que se chamava Medicilândia.

“Em 2012, começa a surgir as amêndoas de alta qualidade e eu consigo acesso ao maquinário de médio porte”


Então, embarco numa expedição pela Transamazônica para conhecer o município produtor de cacau. Ao chegar, me deparo com o fato de que eu estou na terra do cacau, que ele é autóctone, nativo da Amazônia. Eu estava rodeado de tantas frutas: cupuaçu, bacuri, açaí e toda essa biodiversidade que nós temos e que pode fazer coisas incríveis.
Em 2004, eu abri a minha primeira fábrica de chocolate no município de Ananindeua, aqui na região metropolitana de Belém. Ainda não havia equipamentos de pequeno porte, ou você montava uma mega indústria, ou não viabilizava. Então, eu acabei trazendo essa fábrica para dentro do restaurante e comecei a produzir chocolate.
Na época, não tínhamos tanta qualificação nas amêndoas de cacau como nós temos hoje. E aí, o que eu fiz? Eu peguei o produto e qualifiquei em receitas onde eu podia dar o meu toque e deixar ele com alta qualidade. Nós já éramos super tradicionais na produção de brownie, fomos os primeiros aqui da região, talvez um dos primeiros do Brasil. Então, eu retiro da produção de brownie o chocolate industrializado e começo a fazer com o meu chocolate artesanal. E aí que há um up nas vendas e um impacto na qualidade, mesmo com amêndoas não fermentadas.
Em 2012, começam a surgir as amêndoas de alta qualidade e eu consigo acesso ao maquinário de médio porte. Já era uma indústria mas ainda uma empresa pequena, mas com uma produção que era dez vezes maior. Meu restaurante chegava a produzir três quilos por dia. Hoje eu já produzo mais de 30 quilos por dia, o que não é nada no mundo do chocolate, mas já é um avanço enorme. Sobra chocolate e criatividade, as amêndoas começam a se qualificar cada vez mais e ganhar prêmios. A produção do chocolate já era incrível.
Na verdade, isso foi um processo de revolução: ter um chocolate fino na terra do cacau. Isso porque se falava em todos os nomes de peso europeu, mas nós não tínhamos um chocolate de referência aqui no Pará.

ENTÃO, ESSE FOI O MOTIVO DE VOCÊ TER COMEÇADO A PRODUZIR CHOCOLATE NO ESTADO DO PARÁ?
Foi. O meu grande desafio era: nós teremos um chocolate fino na terra do cacau. Porque esse é o começo de um grande avanço. Você começa a ver despontar nomes importantes na Colômbia, Venezuela, sendo o cacau da Amazônia, ele está em toda essa região. Eu achava inadmissível a gente estar na terra do cacau e continuar comprando chocolate de outros lugares, nem sequer tentando produzir.
Era uma ou outra tentativa incipiente que houve, e que não deu em nada. Hoje, há um movimento enorme devido às nossas amêndoas. Na época, nós éramos o segundo maior produtor, perdendo para a Bahia, sendo que a Bahia tinha amêndoas levadas do Pará. Agora mudou o cenário.
O Pará é o maior produtor de cacau do Brasil, com as amêndoas que estão na sua origem, são autóctones daqui. Por isso elas não sofrem tanto quando têm essas grandes crises de vassoura de bruxa ou uma grande ameaça que é a manilha. Mas nós vamos trabalhar nossas barreiras sanitárias para que isso não venha a causar um grande dano. Isso já é uma questão pública, precisa de atenção de toda a população.

“Comer chocolate é como absorver a própria felicidade”

E QUAL É A ORIGEM DO NOME DA MARCA DO CHOCOLATE?
Então, quando eu comecei, em 2004, eu ainda não tinha a marca que nós temos hoje. Ela tinha sido pensada um nome que fazia referência à região Amazônica. Só que, para um cacau fino eu desejava um nome que representasse o que o chocolate é para mim: prazer e alegria plena. Comer chocolate é como absorver a própria felicidade.
Na prospecção de palavras eu não queria colocar nenhum termo em inglês ou coisas do gênero. Assim, eu me deparo com a palavra gaudio, que existe no português, e no italiano tem origem no latim, língua mãe do nosso idioma. A palavra gaudens significa alegria plena, regozijo e felicidade. Foi dessa forma que eu trouxe para o nome de uma marca o que o chocolate representa para mim.
A marca foi registrada exatamente para expressar todo esse nosso trabalho. Cada obra de arte que eu digo ser o nosso chocolate é para ser apreciada, olhada, sentida como uma experiência sensorial. É visão, olfato, paladar, tato, textura, aromas, brilho e sabores. Dentro dessa Amazônia, com essa biodiversidade, conseguimos acesso a um pouco mais de tecnologia. A minha grande alegria é dizer que nós conseguimos desenvolver tecnologia 100% brasileira, numa produção que 90% é executada dentro do Pará.
O que sempre me chamou atenção foi o fato de que até hoje, ainda na terra do cacau, nós não temos os moinhos para produção de chocolate, então, isso não é um problema, mas uma oportunidade de negócios. Enquanto a gente fala aqui, em uma revista de negócios, nós ainda não temos equipamentos de ponta para refino de chocolate, nem para produção em grande escala de chocolate, que seja produzido aqui. Para você ter uma ideia, nós estamos ainda muito atrasados.
O cacau é uma commodity, ele não gera riqueza, ele só movimenta o PIB. Diferente de quando eu faço chocolate. Porque aí eu não vou ter uma máquina só para descascar, secar e reduzir peso, para exportar, eu vou ter a agregação de outras cadeias envolvidas nesse processo. Enquanto, por exemplo, eu vendo uma tonelada de cacau e consigo comprar um computador, quando eu vendo uma tonelada de chocolate, eu já compro muito mais coisa.

“O Pará é o maior produtor de cacau do Brasil”

POR QUE ISSO ACONTECE?
Ao produzir cacau, o produtor de cacau ganha, uma moageira ganha. Quando eu produzo um chocolate, o produtor de cacau ganha, a moageira ganha, passa a ser local e você consegue agregar frutas como cupuaçu, bacuri e açaí. Logo, o recurso também alcança o produtor desses frutos, a empresa logística, a empresa que produz embalagens e outras indústrias que me ajudam nesse processo. Isso tudo em vez de eu estar deixando recursos só para o produtor de cacau.
Porque para fazer um chocolate com cupuaçu, bacuri e açaí, eu preciso de tecnologia de ponta. Apesar da máquina ser desenvolvida no sul do país, mas o produto é feito por pessoas daqui, com esse maquinário. Além disso, eu agrego outras indústrias para essa produção, porque assim nós podemos produzir bastante. Porque ao invés de eu ficar desidratando o fruto, extraindo manteiga ou coisa do tipo, cada um se super especializa. Aí você tem uma grande cadeia, uma capacidade produtiva muito maior de um produto que, se vendido, eu não vou só receber em troca um celular ou um computador, mas a gente agrega valor e recursos suficientes para que se tenha a arrecadação para o desenvolvimento do setor industrial, comercial e produtivo do Estado.

QUAL FOI OU QUAL É AINDA A SUA MAIOR INSPIRAÇÃO PARA SE PRODUZIR UM CHOCOLATE TÃO SABOROSO E PREMIADO?
A minha inspiração é a floresta, riquíssima. Saber que produzindo um chocolate eu ajudo a mantê-la de pé, porque todas as cadeias que eu trabalhar vão fazer uma rotatividade produtiva e, assim, eu vou evitar a monocultura, tendo uma diversidade de sabores únicos e exclusivos.
Então, acredite, tudo o que eu falar que aparentar ser uma crítica não é. É, na verdade, um despertar de possibilidades de negócios que nós temos em abundância nessa terra que até hoje, em plena terra nativa do cacau, ainda falamos em comprar chocolate de outro país. É um mercado em que todos comentam que vai faltar cacau. Na verdade, o que vai faltar é chocolate, se nós não fizermos um bom trabalho. É muito importante lembrar que chocolate não é cacau, chocolate é de cacau. Então, quando o discurso é chocolate temos que pensar que são muitas cadeias produtivas, vários setores envolvidos. Complexo como a produção de um avião.

“Na verdade, o que vai faltar é chocolate, se nós não fizermos um bom trabalho”

COMO FOI RECEBER A NOTÍCIA DE QUE A GAUDENS RECEBEU UM PRÊMIO DA ACADEMIA DO CHOCOLATE DE LONDRES? ALGO INÉDITO NA TERRA DO CACAU.
Eu sempre fui avesso a concursos, porque eu nunca vi grandes marcas participando de eventos do tipo. Então, para mim, o melhor prêmio é o resultado do consumidor. Só que havia uma demanda enorme, muita gente participando de concursos nacionais, etc. Então, chegou esse convite, e eu decidi verificar, porque a Academia dos Chocolates de Londres foi uma instituição que nasceu em 2005 para avaliar e premiar os melhores chocolates finos do mundo.
Quando eu li esse trecho, eu enxerguei a proposta da minha marca ali. Cheguei a apostar no nosso bacuri, mas como eu tinha criado o cupuaçu, eu também mandei o cupuaçu para a categoria de chocolate branco, por ser a mais complexa. Eu queria mostrar o trabalho da minha indústria de desidratação, porque nós desidratamos com um padrão de qualidade incrível, mantendo o sabor, o aroma e as propriedades nutricionais das frutas na íntegra. Por isso, participar no concurso para a categoria de Chocolate Branco era colocar o nosso produto com maior complexidade e maior abrangência de atores locais, participando da produção dele.
Então, não é um prêmio só meu. É um prêmio de quem fez a fruta. É um prêmio dos meus colaboradores. É um prêmio dos nossos produtores de cupuaçu. É um prêmio do cara que fez a extração de uma manteiga com qualidade. Então, esse é um prêmio coletivo. Se eu escolhesse uma outra categoria, não envolveria tantos outros fatores.
Assim como o vinho espumante é o mais complexo dos vinhos, o chocolate branco é o mais complexo dos chocolates. Ainda existe uma polêmica que diz que o chocolate branco não é chocolate, mas é sim. O que acontece é que a maioria não faz de fato chocolate, mas enfia gordura hidrogenada. O importante é que o consumidor leia a ficha nutricional. Existem muitos interesses na legislação dessas fichas nutricionais. Aquilo que nem é chocolate vem sendo vendido no mercado.
Então, eu consegui com chocolate branco, o mais complexo por abranger mais atores na produção, porque aí eu transformei esse prêmio em um prêmio para o Pará e para o Brasil. Eu queria mostrar que nós conseguimos estar entre os melhores chocolates finos do mundo. É lógico que ainda era o primeiro ensaio. A gente precisava ver o resultado. Ia sair em dezembro. Conclusão, me vem o resultado que o cupuaçu ganhou e o bacuri foi indicado, ou seja, ele é uma indicação da academia, então, está entre os melhores.
Estamos levando o nome da Amazônia brasileira. Estamos levando o nome de nossa nação. É um prêmio nosso. Por isso, a complexidade e a escolha exatamente do branco para mandar para a seleção.

“A Gaudens foi a primeira empresa brasileira a ter um selo vegano por análise de DNA”


Tem um outro produto, por exemplo, que eu sempre guardei, porque eu não quero expô-lo em concurso. Foi o único produto convidado para participar do Laboratório de Chocolate Artesanal em Alba, no Festival Tartufo Bier Bianco, em 2017, a nossa Castella, que fez sucesso na terra do creme de avelã italiano.

FÁBIO, VOCÊ PODERIA FALAR UM POUQUINHO O QUE É A CASTELLA?
A Castella é um creme de castanha do Pará com cacau e pouco açúcar orgânico demerara, diferente de outros produtos que levam gordura de palma e leite. Nós fizemos uma linha vegana. Por sinal, a Gaudens foi a primeira empresa, não foi a primeira fábrica de chocolate, foi a primeira empresa brasileira a ter um selo vegano por análise de DNA. Até isso, nós temos fomentado a própria academia, que é o FPA, juntamente com a Biotech, também, participando desse processo, conseguimos estar aptos a receber um selo vegano por análise de DNA. Não tem traço animal ali dentro.

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